TIPOS & COISAS E CASOS (12)
Era um arraial. Presunçosamente, havia quem o chamasse de cidade, ou de vila. Mas era um arraial. Com vida própria, porque interligava muitas e pequenas propriedades agrícolas.
Tinha seu cineminha, que
funcionava aos sábados e domingos. E também uma espécie de posto de gasolina,
onde o combustível era trazido em tambores para servir a população. O açougue
do Frederico, que matava uma rês por sábado. O posto de saúde, cujo médico
vinha uma vez por semana para consultar quem precisasse. Havia também a
farmácia do seo Osorio, o campo de bocha do Felipe, o bar do Custódio e o
armazém do Salim.
O movimento aos sábados às
tardes e aos domingos era enorme, pois os sitiantes vinham todos para o
arraial. Custódio vendia cervejas, guaranás, cachaça e sanduiches de pão com
mortadela.
O movimento comercial maior
era do Salim. O turco tinha de tudo: arroz, feijão, fumo em corda, enxada, foice,
enxadão, óleo, vinagre, banha e toucinho, botinas e tudo o necessário.
Tudo era uma família.
Havia um soldado da polícia
permanentemente ali, para manter a ordem. Era uma espécie de delegado. Na casa
em que ele morava e que era custodiada pela sub-prefeitura, havia um quartinho
qual uma cela, que era conhecido como “cadeia”. Sempre desocupado e mui
raramente um ou outro alí “guardado” para curar a carraspana.
O sub-prefeito era o seu
Osório, o farmacêutico. Mas não havia nenhum trabalho para ele, a não ser
visitar o prefeito uma vez por mês, fazer um relatório e reivindicar melhorias
que nunca aconteciam.
No armazém do Salim havia
outro atrativo que era o jogo de bicho. Ele mesmo organizava e bancava o jogo.
Só valia o grupo do bicho e era o dalí, diferente da cidade, mesmo porque o da
cidade tardava muito para chegar o resultado.
O Salim, não. Ele bancava o
bicho, diariamente.
Do seguinte modo: um cestinho
desses do tipo de coleta de ovos, era a urna. Estava amarrado por um cordel que
passava por uma pequena carretilha, presa ao madeiramento do telhado.
O turco escrevia num
papelzinho o nome do bicho que iria dar aquela tarde. Ninguém via o que o Salim
escrevia, mas via ele colocar o papel no cestinho que em seguida era erguido, o
cordel preso na prateleira e só quando “ia correr” é que baixava o cestinho e a
gente ficava sabendo o bicho que “tinha dado”.
A turma jogava adoidamente. De
vez em quando um ou outro ganhava, mas na verdade, quem mais ganhava era o
turco.
Um dia, alguns amigos resolveram estabelecer um “comprot” para quebrar o bicheiro. E ficou combinado: o dia em que um desconfiasse ou tivesse certeza do nome do bicho que o Salim escreveria no papelzinho, contaria em sigilo para os outros e todos jogariam naquele bicho. Seria uma espécie de fórra e vingança, por tudo quanto haviam perdido e por tudo quanto o turco havia ganhado à custa dos trouxas.
E aconteceu.
Leôncio havia machucado um
braço e estava sem poder trabalhar.
Propositadamente e com cara
de bobo, Leôncio ficou vários dias alí no armazém, tentando descobrir que bicho
iria ser escrito. Um dia, quando Salim ia escrever o nome do bicho, Leôncio, de
rabo de olho, percebeu que o bicho escrito pelo turco começava com a letra “B”.
Sorrateiramente, espalhou o
fato e todos raciocinaram: bicho do jogo que começa bom a letra “B” existem
dois, o burro e a borboleta.
E a turma largou o pau
jogando no burro e na borboleta. Salim fazendo o jogo. Chegava mais um e dizia:
- Salim, jóga 50 mil réis na
borboleta e 50 mil réis no burro.
E assim por diante.
Conforme combinado pelos
complosistas, Leôncio não arredou os pés do armazém, para evitar que Salim
fizesse alguma tramoia e mudasse o resultado. E perguntavam-lhe se ele estava
certo de que o turno não havia mexido no papelzinho escrito. “Di jeito
nenhum... vi cum estes zóio que a terra hai di cumê” – afirmava convicto o
Leôncio.
Todos pensavam: “É hoje qui u
turco vai si fornicar todo”.
Perto das quatro horas,
começaram a pedir para sair o bicho. E o Salim respondia: “Cêdo, inda... dá
tembo brá otros bissôa jogá”.
Turma impaciente. Tempo
passado. Até que Salim anunciou que o bicho iria “correr”. Todo mundo em
suspense, lembrando que o Leôncio havia visto a letra “B” no começo da palavra
e que todo mundo havia pregado fogo no burro e na borboleta.
Salim desceu o cestinho. A
turma aproximou-se ansiosa.
O turco abriu o papelzinho e
declarou com um amplo sorriso:
- Deu birú.
Extraído dos arquivos pessoais de José Arnaldo com data de 18/8/1988
Comentários