O jogo do bicho (26 de outubro de 1974)
Tinha eu uns doze anos mais
ou menos e o que mais aspirava na vida era possuir uma bicicleta. Residia no
sítio e sempre que ia à cidade gastava parte do dinheiro que levava pedalando
bicicleta de aluguel.
Aspirava fazer economias para
um dia adquirir uma “magrela”, por mais usada e velha que fosse.
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Nunca consegui esse ideal,
pois só vim a comprar uma bicicleta aqui em Marília, já adulto e pai de filhos.
Foi quando comprei uma “magrela” usada do Dr. Luiz Scaglio, pelo preço de
quinhentos cruzeiros (velhos), que foi paga em cinco meses, à razão de 100
cruzeiros por mês (menos de dez centavos de hoje), cuja dívida amortizei com a
prestação de serviços contábeis.
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Tive uma única oportunidade
de comprar uma bicicleta, mas meu velho pai “ligou o ventilador na minha farofa”,
tendo impedido-me de comprar aquilo que representava para mim um anelo, um
ideal, uma alegria inigualável.
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“Seo” Leopoldo era um preto
velho, solteiro e sem família. Era colono de um sitiante português e muito
viciado no “jogo do bicho”. Costumava levantar por volta das 4 horas da manhã,
fazia seu café, escolhia o feijão que punha no fogo e “se mandava” a pé para a
cidade, a-fim de fazer sua “fezinha”, voltando a tempo para madrugar na
lavoura.
O negro velho lidava com mais
números de centenas, milhares e dezenas do que um escritório de engenharia. Fazia
cálculos e mantinha espetados num arame os resultados do jogo de todos os dias.
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Certa feita, levantei cedo
para ir à cidade fazer determinadas compras para meu velho pai. Arreei o cavalo
“Bainho”, tomei uma caneca de café e principiei a jornada.
No percurso, topei o “Seo”
Leopoldo, que regressava à sua casa, depois de ter feito seu joguinho. Parei e
principiamos a conversar. Dissera-me o preto que havia sonhado com um galo
enorme e que havia “lascado” um mil réis no “grupo” e feito dois “ternos” de
quinhentos réis cada um.
Contei-lhe que naquela noite
eu havia sonhado que comprara um bicicleta por mil e duzentos réis.
É vaca – disse. Jogue na
milhar da vaca.
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Na cidade, depois de ter-me
desobrigado do que fôra fazer, parei o animal defronte do chalé de jogo do
bicho. Apeei e entrei dizendo para o bicheiro Atílio:
- Quero jogar duzentos réis
no milhar 1.200 da vaca.
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O bicheiro aconselhou-me a
jogar 100 réis na centena e 100 réis no milhar e eu aceitei a sugestão. Dobrei cuidadosamente
o talãozinho da aposta e guardei no “bolsinho do relógio” da calça, regressando
para o sítio.
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O dia passou normalmente para
mim, “quebrando milho” até a tarde. Ao entardecer, o Antonio Calabrês, que
vinha da cidade para seu sítio, estacionou o caminhão tipo “Ramona” à porta do
botequim de beira-de-estrada que pertencia a meu pai para tomar “umas e outras”,
como sempre fazia.
Eu estava com o prato de bóia
na mão esquerda, no canto do balcão, fazendo meu jantar. Foi ai que surgiu a
conversa do resultado do jogo daquele dia e o Antonio Calabrês disse que havia “dado”
a vaca com 1.200. Como que despertando, interrompi a janta para dizer que eu
havia jogado na vaca com 1.200.
Todos se interessaram e eu
mostrei o talãozinho. O Calabrês conferiu com o resultado que havia colhido no
chalé e comprovou a sorte.
Nada entendia eu sobre o
assunto, mas fiquei sabendo que havia ganho a importância de 470 mil réis.
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Não dormi aquela noite,
esperando que o dia amanhecesse para ir à cidade receber a “gaita”.
Estava ainda escuro e sai, a
pé, caminhando o mais apressadamente possível. Devo ter batido um autêntico
recorde em fazer o percurso de oito quilômetros, pois cheguei cedo demais ao
chalé.
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O Atílio pagou-me o valor da
aposta: duas notas de 200 mil réis, uma de cinquenta e uma de vinte.
Nunca havia visto tanto
dinheiro em minha vida e tremia de emoção. Guardei o dinheiro no bolso e prendi
um alfinete na boca do bolso, como medida de segurança para não perder a
fortuna.
Regressei para o sítio com a
mesma velocidade da ida.
Além do alfinete prendendo o
bolso, minha mão estava colocada sobre a coxa, “em cima” do dinheiro! Parecia-me
que todo o percurso estava ocupado por ladrões que iriam assaltar-me e sentia
até medo.
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Meu plano era retornar no dia
seguinte à cidade para comprar uma bicicleta “Bianchi”, novinha em folha, que
eu havia visto em exposição numa livraria e que custava 130 mil réis. Sobraria ainda
340 mil réis, que eu daria ao meu pai.
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Ao chegar em casa, o “velho”
pediu-me o dinheiro. Ponderei que desejava ficar com 130 para comprar a
bicicleta.
- Nada de comprar bicicleta…
Isso é coisa de grãfino da cidade – ordenou meu pai.
Entreguei o dinheiro e nunca
pude comprar a bicicleta, a não ser a que acima referi e muitos anos mais
tarde.
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Essa lembrança ocorreu-me
agora, quando os deputados federais José da Silva Barros (Arena, RJ) e Jair
Martins (Mdb, GB) manifestaram-se na Câmara Alta favoráveis à volta do jogo do
bicho, a ser explorada pela Caixa Econômica Federal, como fonte de renda para a
manutenção de entidades educacionais.
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