A senhora morreu com sede, mamãe? (08 de maio de 1983)
O velho-novo espanhol, imigrante e semianalfabeto,
era pai de sete filhos, em vésperas do oitavo.
Manoel, era o seu nome. Os anos
de 1931, 1932 e 1933, ele os havia passado na mesma fazenda, como colono,
“tocando” seis mil pés de café velho e bem formado.
Ele e a mulher, a Josefa, davam duro no cafezal, de
sol a sol. A mulher levantava invariavelmente às quatro da manhã, fazia o café
e o almoço. O homem ia cedinho para a lavoura e a esposa depois de cuidar da
casa, alimentar as crianças – que deixava aos cuidados da mais velha das mulheres, a Isaura, de 8 anos
– levava o almoço para o marido e lá ficava até o sol apresentar duas braças de
fora.
Então regressava para casa.
Zéca era o filho mais velho. Tinha cerca de 11 anos,
mas não parecia tanto, pois era magrinho, pequeno, quase raquítico. Trabalhava
de sol a sol. Ele e o Joaquim, um negrinho que era seu “irmão de criação”,
cortavam diariamente lenha nos pastos, que vendiam em carro-de-boi na cidade 12
quilômetros dali.
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Com aquiescência do fazendeiro, o Manoel plantava
feijão e milho nos vãos de uma pequena horta, que lhe fornecia tomates,
verduras e outras “misturas” para o feijão-com-arroz, durante o ano inteiro.
Trabalhador persistente, criava sempre seus porquinhos “para o gasto”. Vinte e
dois a vinte e cinco carros de lenha eram vendidos por mês, a 8, 10 e 12 mil
réis. Isso representava sempre um dinheirinho guardado e reservado. E o Manoel,
por economia e segurança, deixava “na mão” do patrão, todos os pagamentos
bimensais, para receber com o “pagamento geral”, após a colheita do café.
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Não tanto cansado, mas muito mais preocupado com o
futuro dos filhos, o espanhol tencionava abandonar a lavoura, transferindo-se
para a cidade, onde os rebentos pudessem cursar um grupo escolar.
Cafelândia era onde moravam. Mudaram-se para a
cidade, com o fito de aguardar o nascimento do oitavo nenê, para depois
transferir a residência em definitivo.
Procurando “dar uma volta” para “estudar” alguma
coisa, Manoel tomou um ônibus e veio parar em Marília. Gostou da cidade, mas
percebeu que não tinha nenhuma profissão que pudesse exercer num centro em
desenvolvimento. Visitou outras pequenas urbes das adjacências e acabou
aportando em Vera Cruz. Optou pela cidadezinha simples e que o cativou. Estabeleceu
negócio e comprou um bar.
Deu uma “entrada” (sinal de negócio) e acertou que
dentro de determinado tempo, voltaria com a mudança e tomaria posse do
estabelecimento. Acabou perdendo o dinheiro empregado e nunca mais retornou a
Vera Cruz. O destino fez sua vida mudar.
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Zéca, o garoto, foi avisado de que iria “ganhar”
mais um irmão, ou irmã. Na época certa a
mãe de Josefa foi ter em casa do Manoel, pois ela iria incumbir-se de fazer o parto
da filha, como havia feito outros.
Mas o caso ficou grave e a sogra pediu que o genro
chamasse um médico. O Dr. Edgard Moss compareceu. No próprio quarto do casal,
sem qualquer preparo antecipado, precisou executar uma cesária de urgência,
imediatamente.
Quando o médico saiu, a mulher estava prestes a
morrer. O doutor havia recomendado que não desse água à doente, porque a mesma
havia perdido muito sangue.
O menino, assustado, estava próximo ao leito. Os
adultos choravam, percebendo o desenlace, mas o menino, nos seus 10 anos de infância e ingenuidade roceira,
não atilava muito bem com a dura realidade. A mulher pedia e implorava agua,
pelo amor de Deus. O menino teve uma reação súbita: correu à cozinha e não
encontrou agua na lata onde sempre havia o líquido para o uso doméstico e para
beber. Dirigiu-se na escuridão da noite para o quintal, foi ao poço, desceu o
balde ao fundo e começou a girar a manivela com pressa. Apanhou o balde, encheu
um canecão feito com uma lata de óleo “Sol Levante” e correu para o quarto.
Quando a mãe viu o caneco com agua esforçou-se para estender, mas as mãos dos
presentes arrebataram a vasilha, impedindo. O menino chorou, esperneou, pediu.
Os familiares, sinceros e respeitosos à ordem do médico, que deveria voltar em
seguida, com outro medicamento, não deixaram o garoto dar a água.
A mulher alisou a mão do menino, tentando umedecer
os lábios secos. Com os olhos semicerrados, balbuciou ao filho: “... quantas estrelas...
bonitas... muito bonitas... um campo azul... muito azul...”.
O menino foi afastado, os familiares
desesperaram-se. Choros e gritos. A Josefa morreu.
O menino, o Zéca, sou eu próprio. Indago-me,
sozinho, neste 8 de Maio:
- Mamãe, a senhora me perdoa por eu não poder
ter-lhe dado a água? A senhora morreu com sede, mamãe?
Extraído
do Correio de Marília de 08 de maio de 1983
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