Porque matei (Natal de dezembro de 1973)
Conto de José Arnaldo, especial para Edição de Natal – 1954
Na lufa lufa comum e
cotidiana da grande cidade, o povaréu corre apressado em direções diversas.
Apático e indiferente ao borborinho de vidas que tenho em redor, como um
perdido na mole humana, caminho eu, qual um autômato errante. Modestamente
vestido, com uma fatiota um tanto fóra de uso, um surrado chapéu na cabeça,
sapatos sem cordões e u’a mala pendurada na mão direita, vou andando,
aereamente, à esmo, sem destino pré-fixado, sem a mínima preocupação para com a
agitação das gentes que domina as ruas. Quase não me apercebo do trânsito
barulhento e incessante. Meu olhar é morto, transpirando exaustidão. Minhas
afeições são pálidas, sulcadas de rugas indeléveis, semi-ocultas por uma barba
de dois dias, documentam uma vida de sofrimentos precoces. Meu andar é incerto,
atabalhoado, inseguro. Meu destino parece claudicar, sem ponto certo de direção
aparente. Até em minha mão, crispada como uma garra sôbre a alça da malha
vermelha e anti-estética, a minha indecisão está patente. Tenho, em aparência,
dez anos mais do que na minha certidão de idade.
Chego a uma esquina, parando
indeciso por momentos; retomo o passo, automaticamente, ainda titubeante, como
que com medo. Sigo em frente, atravessando a rua, direção à uma praça pública.
Árvores frondosas protegem os bancos de granito madreperolado, sombreando-os.
Nos canteiros, outrora bem cuidados, campeia a mescla de cascas de frutas,
caixas vazias de fósforos e cigarros, papéis abandonados e folhas de árvores.
Pequenos pássaros, salpicam a paisagem, aqui e ali, mudando de pontos, quando
sêres humanos se avizinham. Vendedores ambulantes apregoam frutas e refrescos.
Engraxates maltrapilhos, vendem sujeira e trabalham em algazarras. Fotógrafos
típicos de jardins e portas de igrejas, com idosas máquinas ladeadas de
retratos-modêlos, completam a vida do característicos logradouro. Nos bancos
públicos, pessoas conversam.
Paro, como se fôsse um
turista num país desconhecido; lobrigo um lugar vago, dirijo-me até êle,
sentando-me; abandono ao lado, no chão de “petit pavê”, a velha mala; cruzo as
pernas, recostando-me para traz, braços abertos e cotovelos apoiados sôbre o
espaldar do banco, abandonando o olhar pusilânime no azul do céu, em alguns
pontos tintos de fumaça das fábricas.
E penso:
Há nove anos que aguardei,
com ansiedade inalienável, êstes momentos de liberdade. Nove anos de
sofrimentos, de angústias, de desesperos, em silêncio, numa luta titânica de
submissão e estrangulamento de meu próprio coração, sem protestos, sem queixas
ou lamentações. Nove anos de penitenciaria!
Eu, que desde pequeno havia
sonhado com um mundo de felicidade, uma felicidade simples e completa, à meu
modo, vi, por um inexorável golpe do destino, o catastrófico desmoronamento de
minha própria vida, como uma antevisão do transcorrer de meu próprio funeral.
Eu, que alimentei carinhosamente, desde jovem e inexperiente, a ilusão de
casar-me e constituir família, amparando na velhice o meu querido pai, vi-me,
de um momento para outro, tropeçando no meu próprio destino, cometendo um crime
de morte e passando a minha mocidade na prisão!
Nove anos de angustiosa
expectativa por esta ocasião, quase dois lustros de ansiedade, de desespero, de
lutas revoltas contra a própria razão, de férreo auto-controle pessoal, e,
agora, chegado o tão esperado momento, chego a considerá-lo indesejável,
inoportuno. Sou um covarde ou um vencido. Tenho medo da realidade.
Dos catorze anos que me foram sentenciados,
por um júri de velhos taciturnos e sonolentos, em que um inexperiente advogado
de defesa, designado por mercê do próprio Juízo, foi impotente e inépto para
derrubar a argumentação de aço de um quase satânico e hábil promotor público,
que me apontou como um autêntico e profissional criminoso, como um monstro,
cinco me foram perdoados por indulto, “como prêmio à excepcional conduta”.
Dá-me asco a recordação. Eu, Isidoro Marques, de uma tradição pobre, porém
briosa, sem manchas de antecedência, fui indultado por bôa conduta na prisão! Nos últimos dias de
presídio, quando a novidade chegou ao conhecimento dos detentos, fui o centro
de convergências obrigatórias da casa. Até invejado fui. E, com que desprazer,
obrigado várias vezes, a ouvir, do próprio Diretor, nas formaturas de revista
diária, elogios, endeusamentos, nomeações “ad-hoc” de exemplo vivo para os
demais encarcerados!
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Tudo começou há dez anos
pretéritos. Um longo período. Um lapso de tempo carregado de amarguras e desespero,
de descrenças do próprio mundo, de nojo das injustiças dos homens, da
prepotência do dinheiro. Matei um homem. Mas... matei um homem? Cometi,
realmente um crime que bem justificasse catorze anos de cárcere? Não, não foi
bem isso, pois na balança do reconhecimento abalizado, duas bôas ações deveriam
apagar u’a má ação. E foi o que eu fiz. Prestei mesmo dois serviços relevantes:
vinguei a morte covarde e brutal de meu velho pai e aboli da sociedade,
simultâneamente, um cafajeste, ladrão, vagabundo e contumaz desordeiro. Tenho a
certeza disso. E não me arrependo. Indigna-me, isto sim, a própria sociedade,
que, hipocritamente, ao envez de medir com o metro da razão e sensatez as
devidas proporções dos fatos, apontou-me como um verdadeiro bárbaro, como um
calejado criminoso, condenando-me.
Minha velha mãezinha, de há
muito, quando eu era ainda mui pequeno, faleceu por deficiência de recursos
médicos. Fiquei, então, só, com meu velho pai extremoso, devotado, que jamais
quisera casar-se, conforme sempre afirmava, para não dar-me u’a madrasta. Não
pude educar-me convenientemente, mas as derrapagens inóspitas do caminho da
vida, haviam curado em mim, uma adolescência extemporaneamente madura. Conclui,
com sacrifício, apenas o curso primário, em escola rural mantida pelo Estado.
Mal saído dali, lancei-me ao trabalho, ajudando meu velho pai. Assim cresci,
muito distante de conjecturar o meu futuro. Apesar de tudo, era feliz. Levava
uma vida rude, trabalhando na lavoura, enquanto meu pai, com a carroça puxada pelo
cavalo “Pingo”, transportava para a cidade, onde vendia, frutas e legumes, de
cuja renda subsistíamos. Doente e velho, nada mais do que isso lhe seria
permitido realizar, e, não sem sacríficos. E assim íamos vivendo, até que um
dia – a lembrança me é nítida e cristalina – tivemos aquele golpe desolador:
roubaram o “Pingo”!
Num canto da cerca, entre
dois mourões, o arame havia sido cortado, criminosamente, a golpe de alicate. O
velho ficara desolado. Eu, sem saber o que fazer. Sem o cavalo, como faríamos para
continuar vivendo? Comprar outro, na ocasião, não era possível, pois a safra do
ano anterior foram grandemente prejudicadas pelas rudes estiagens e renda geral
obtida não fora suficiente nem sequer para pagar a metade dos compromissos
assumidos durante o exercício. Ademais, o “Pingo” era como se fosse a terceira
pessoa de nossa família. Manso, amestrado, de confiança no serviço, era até
pretendido pelos fazendeiros vizinhos.
Meu pai estava inconformável.
Uma tarde, quando nos encontrávamos sentados na soleira da porta, debulhando
milho para o próximo plantio, o velho me dissera:
- Meu filho, Deus que me
perdoe, porém ninguém me tira da cabeça que o ladrão do “Pingo” não é o Zé
Preto. Hoje o malvado passou por aqui, quando você não estava. Sorridente, alegre,
gentil, fez questão de falar várias vezes no animal, como se estivesse
esgaravatando uma ferida em meu peito. Fez crescer como um bambu as minhas
suspeitas. Convidei-o a ir comigo, procurar o cavalo roubado. Aceitou. Tenho a
certeza de que cometerá um gesto qualquer de contradição e se trairá, para que
eu descubra o roubo...
- Mas – atalhei eu – isso é
uma imprudência: o senhor sabe que ele não presta, que é um elemento perigoso e
capaz de qualquer desatino, se, de leve, desconfiar de suas intenções... Não
permitirei, a menos que eu os acompanhe.
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Partimos os três, dias após.
Andamos errantemente pelos mais distantes lugares típicos de permutas e
comércio de animais. Zé Preto dava fluentes mostras de concordância para com
tudo, com calma inacreditável, como um artista habituado na representação de
seu papel. Já estávamos propensos a desistir da jornada, quando num sábado à
tarde, aportamos num local chamado “Bairro Branco”; desmontamos à porta de um
boteco de beira de estrada, onde uma fieira de animais sem encontrava amarrada
aos palanques da cerca. Entramos no asqueroso recinto, em cujo balcão
encostavam-se peões, segurando copos de pinga, fumando cigarrões de palha,
riscando o chão de barro batido, com grandes e enferrujadas esporas e cuspindo
seguidamente por terra.
O velho pedira água, tomara a
caneca cheia do líquido, enquanto seus olhos perscrutavam, como os de um
esquilo, todo o ambiente. Zé Preto mandara vir um copo de aguardente, fizera um
gesto rápido de oferecimento aos presentes, desses gestos proforma, e, lépido,
emborcara o conteúdo garganta adentro; lambera, a seguir, os grandes lábios com
satisfação e limpara a boca no punho da camisa suja e surrada.
Naquêle momento, aproximou-se
da porta da venda, um caboclo manteudo, barba rala, cachinco de barro num canto
da boca, cavalgando um animal: o “Pingo”! Meu pai empalideceu e ficou como que
petrificado. Olhou para mim, como a pedir socorro, a indagar uma ajuda, a
solicitar uma providência. Refeito do choque, readquiriu a ação e adiantou-se
para o desconhecido:
- Moço, me desculpe, mas onde
o senhor comprou êsse animal?
O recém-chegado lançou um
olhar atencioso ao interlocutor, desviou as vistas para o cavalo escurecido
pelo suor, e, como satisfeito por haver o mesmo despertado o interesse do
velho, respondeu:
- Uái, moço, eu “barganhei”
êle no domingo retrasado, lá na venda das “Duas Pontes”... e já enjeitei muito
negócio bão pelo cavalinho...
Zé Preto continuava apoiado
sôbre o balcão, de costas voltadas para a porta, mantendo animada conversa com
o botequineiro. Não percebera e nem tampouco ouvira a conversa dos dois, pois,
prosseguia bebendo, intermitentemente, seguidos “martelos” de cachaça.
Meu pai ficou, naquêle
momento, inativo; eu, por meu turno, fiquei apoplético, com aquela aparição
inesperada do animal procurado.
Nisso, Zé Preto voltou-se
para nós e seus olhos se cruzaram com os do visitante. O malandro mudou de côr,
ao ser observado por mim e meu pai. Pareceu até haver perdido o sangue do
rosto. O cavaleiro, constando a pessôa do negro, apontou-o a meu pai, dizendo:
- Foi dêsse aí, que eu possuí
o cavalinho...
Com a rapidez de um raio, Zé
Preto levou a mão à cintura; uma grande faca “peixeira” reluziu em sua mão
nodosa, descrevendo um círculo velocíssimo e foi cravar-se no peito de meu pai,
com surpreendente rapidez. Não existiu qualquer palavra ou gesto do famigerado,
senão a ação inesperada, que não nos permitiu, siquer raciocinar sôbre o que
estava acontecendo. Em fração de segundos, consumou-se o crime covarde e brutal.
Meu pai tombou sem palavras, deitando pelo peito golfadas de sangue. Atirei-me,
azoinadamente sôbre o velho, como se não acreditasse naquilo que meus olhos
estavam vendo. O criminoso, tal um felino, saltou para fóra do recinto.
Terrificados, os demais presentes, voltaram a si, despertados pelo galopar de
um animal, que conduzia em disparada louca, o terrível assassino, deixando na
estrada uma impermeável nuvem de poeira. Alguns saíram, certificando-se então
da inutilidade da perseguição e voltaram para acudir o ferido, que expirava
apoiado em meus braços.
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Desolado, cabisbaixo, voltei
para a casa, conduzindo um cavalo com a montaria inerte e uma onda de revolta a
dilacerar-me o peito.
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Doze dias depois o assassino
apresentou-se à prisão, acompanhado de um advogado, notório em tôda a
redondeza, pelas suas inexcrupulosas ações e pelas vitórias profissionais
vergonhosamente conquistadas em defesa dos mais abomináveis facínoras do lugar.
Seu caráter e suas qualidades condenáveis, eram cobertas pelo grande valor
dotilóquio que possuía e que chegava mesmo a torná-lo respeitável.
Para mim, desde o dia em que
Zé Preto se apresentou à Justiça, até o dia do julgamento, decorreram vários
séculos.
Chegou, afinal, o fatídico
dia. Na cidade, pelos bares, na rua, nas esquinas, só se falava nisso. Era o
“prato do dia”, parecia mesmo ser um acontecimento de interêsse geral.
Muito antes da hora aprazada,
a sala do júri estava literalmente repleta. Gente de tôdas as categorias e
posições sociais, ali se encontrava, para acompanhar o desfecho tão
ansiosamente aguardado. O corpo de jurados era composto por elementos que eu,
de antemão, considerava meus inimigos, advinhando-lhes as decisões finais.
Parecia-me tudo adredemente preparado para a absolvição do bandido. Relutei, em
vao, para afastar de minha razão, aquelas conjecturas, aquela certeza. Tive
ainda a última esperança, de que, dentre os membros do Conselho de Sentença,
alguém não morresse de amores pelo sagaz dr. Patesco e não se deixasse
influenciar e atemorizar pelos argumentos convincentes e habilmente cultivados
que iriam brotar da boca daquêle advogado de criminosos. Confiante, a defesa
andava de um para outro lado, sobraçando a pasta volumosa e velha, revendo
papéis, transpirando segurança, cumprimentando os retardatários e distribuindo
sorrisos a todos, com a confiança de um gladiador. Aquelas atitudes, apertavam
em torno de si, a cada minuto, o auto-domínio de sua importante capacidade
ciceriana, que o dr. Patesco mais aperfeiçoava e multiplicava, naquela
caminhada condenável em pról dos criminosos.
A sessão teve início, com a
chegada ao recinto, do Presidente do Tribunal, a promotoria e os jurados. Em
seguida, adentrou Zé Pinto, com dois soldados da Polícia, a guisa de damas de
companhia. Mas, o dr. Patesco, psicologicamente, convertera o assassino. O
criminoso entrara na sala, transmudado de peão vagabundo em um aparentemente
completo “gentleman”, envergando um discreto terno claro, barba e cabelos
cortados, gravata e até colarinho engomado! Até sapatos de verniz! A presença
do negro assassino teve um efeito esperado. Pelos olhares curiosos dos
presentes e pelos dos próprios jurados, não me foi difícil deduzir de que eram
enormes as possibilidades de sua absolvição.
Fôra, sem dúvida, uma sagaz
artimanha de defesa. Era o mesmo que a recaiacão da fachada de um prédio velho,
acrescido de um fabuloso e extravagante anúncio a “gaz neon”. Zé Preto
mostrava-se confiante e confundentemente calmo. Inquestionavelmente, o dr.
Patesco lhe adiantara a certeza de sua vitória, que iria aumentar o ról de
inúmeras outras do mesmo porte. O clima estava pesado, denotando ansiedade. O
silêncio perdurava e o mais leve ruído num papel era nitidamente pressentido.
Abertos os trabalhos, o Juiz
ordenou ao escrivão encarregado, a leitura dos autos, cujo mistér o funcionário
desenvolveu com rapidez espantosa. O Presidente deu a palavra ao representante
do Ministério Público, um velho que ostentava uma toga mais idosa do que o
dono, com uma cara de fuinha e alguns ares napoleônicos. Logo ao iniciar as
suas primeiras considerações da preliminar da acusação, sofreu um bombardeio de
apartes da defesa, ferinos e irônicos. No princípio, a assistência permaneceu
passiva. Depois, como se fosse uma “torcida” que aos poucos se inflamasse,
começou a dar mostras de gostosa e favorável predileção pelos satíricos,
extravagantes e bem baralhados apartes do temível advogado. Debalde o Juiz
pediu silêncio, e, por duas vezes, ameaçou fazer evacuar o recinto.
O defensor, confundia, a
olhos vistos, a acusação, que, por sua vez, chegava a expor-se ao ridículo, sem
encontrar argumentos para anular os incrivelmente “fundados” apartes do dr.
Patesco, que desfazia, habilmente, os pontos nevrálgicos da questão, lançando
sôbre os mesmos e o conceito dos jurados; uma espessa rede de dúvidas. Para
mim, a luta ali travada, o estava sendo entre o Ministério Público e dois
bandidos, um dos quais, intelectualmente, estava, gradativamente, levando
notória vantagem sôbre a acusação.
A Promotoria falou cerca de
uma hora, dando por concluída a acusação. Depois falou a defesa. Torrentemente.
Nem gosto de recordar-me daquelas passagens. O dr. Patesco principiou seus
trabalhos defensivos, como se contasse uma história, onde criou personagens
semelhantes à vítima e ao acusado, fantasiando pontos a bel prazer e pincelando
a gosto, locais pitorescos e empolgantes, com uma fertilidade de imaginação
digna de nota, como uma lenda de Sidney Horler, em que o vilão passou a ser
herói e a vítima o vilão. Depois, com convicção galvanizada, desfez, para meu
desespero, tôda a argumentação da Promotoria, desdizendo uma por uma, as
afirmativas do acusador e arrazou, vitoriosamente, alguns pontos da acusação,
que porventura ainda teimassem em ocupar lugar nas mentes de uma pequena parte
da assistência ou dos jurados. O efeito ia surtindo a olhos vistos, como uma
injeção de penicilina milagrosa. Todos os presentes, me parecia, haviam-se
transferido, com armas e bagagens, integral e incondicionalmente, para a
“verdade” contida nas sábias palavras do dr. Patesco. No fim de duas horas deu
por encerrada a defesa, não sem apontar Zé Preto como um autêntico herói, e –
cúmulo – um mártir!
O Conselho de Sentença
recolheu-se à sala privativa. Nem meia hora depois, voltou. O Presidente leu o
“veredictum” que surtiu o efeito de uma bomba: absolvido por unanimidade!
Foi um reboliço. A
assistência movimentou-se qual um enxame, invadindo o recinto da sessão, caindo
aos abraços e cumprimentos sôbre o famigerado, como num golpe de mágica
transformado em herói. Por certo, se a alguém tivesse acudido a idéia, não
teria deixado de solicitar um autógrafo do bandido!
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Vencido, desiludido,
humilhado, abismado e revoltado contra todos, contra a própria Justiça,
abandonei a cidade. Nenhuma desculpa, nenhuma ponderação, nenhuma providência,
poderia, jamais, apagar de meu coração, a tão descomunal e abominável
injustiça, que a própria Justiça, tão mal representada por meia dúzia de
amedrontados e insensatos jurados, fizera cravar no mais profundo recôndito de
meu coração próprio. Uma revolta tremenda, nauseabunda, acobertava meus mais
sagrados sentimentos filiais, profundamente feridos; os meus brios e o último
resíduo de esperança, desapareceram, em consequência do ardiloso resultado que
o dr. Patesco soube trabalhar e inequitativos jurados corroboraram.
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Mudei-me para longe. Não
podia, de nenhum modo, encontrar ambiente para mim, naquêle lugar. Dois meses
depois, movido pelo dever de solver um determinado compromisso anteriormente
assumido, regressei à antiga cidade, que eu tanto amei antes e que agora me
parecia abjetamente repulsiva. Senti-me, na rua,, o alvo de curiosidade de
todos e notei a deserção em massa de meus mais chegados amigos. A revolta pela
ingratidão sofrida, por mais que eu tentasse sufocá-la, emergia, vindo
entalar-se em minha garganta, num protesto mudo. Ao passar por um botequim, que
mais não era do que um quartel general de bandidos e desvergonhados vagabundos,
fui chamado pelo proprietário. Êste, impingindo-me u’a mentirosa intenção de
cumprimentar-me, nada mais pretendeu do que auscultar-me os sentimentos e a
mágua que me dominava transbordantemente. E o fez, com segundas intenções, a
menos que fosse muito estúpido. Isso eu pude perceber, logo ao entrar no
asqueroso antro. Encostado a um lado do balcão, com o indefectível copo de
pinga entre uma das mãos, lá deparei Zé Preto. Esfriei. Ao ver-me, sorriu para
mim, sarcástico, atrevido, como um general vitorioso que passa em revista a
tropa vencida. Os presentes sustiveram a respiração, como a aguardar um motivo
de transe, prestes a ferir-se. Surpreso, perdi a ação. Não esperava encontrar
ali, naquelas condições de desafio, o matador de meu pai. Tentei controlar-me e
para enganar a minha própria consciência, pedi água. O vendeiro trouxe-me uma
caneca esmaltada, com o líquido. Nos lábios de Zé Preto, estava desenhado um
sorriso de mofa que me indignou. Sem desejar, revivi o quadro dantesco que
pouco tempo antes fez parecer meu pai, estupidamente, sob o pontaço covarde
daquêle canalha. Sentí um frêmito gritante dentro de mim. O sangue fugiu-me das
faces. Chamei, com insistência, o auto-domínio, inutilmente. Perdi o tino. Como
se uma fôrça sobrenatural movesse meu braço direito, minha mão agarrou uma
barra de ferro que fazia peso sôbre papéis de embrulho no seboso balcão. Com
uma força incrível, que concatenasse a potência de meus dois musculosos braços,
a arma improvisada desceu em cheio sôbre a fronte luminosa do bandido, que não
teve siquer tempo de esboçar a defesa. De relance, vi o olhar apalermado dos
demais e a inútil e tardia tentativa de reação do bandoleiro. Pude notar a
metamorfose do sorriso irônico em máscara de dor, um gemido surdo e o
escorregamento gradativo de um corpo mole e desgovernado, que, como uma enguia,
desceu escorregando-se junto ao balcão e ficou meio sentado no chão imundo.
Como o riscar de um relâmpago, meu bom senso me preveniu: fugir.
Recuei, quando um caboclo
magro e alto, com a camisa aberta ao peito, lançava chispas pelos olhos
vermelhos de álcool, pulou sôbre mim. O adversário gratuito teve ainda tempo de
agarrar-me pelo braço e por pouco não me dominou. Dei um rápido e violento giro
no membro prisioneiro, fazendo o inimigo perder o equilíbrio, desgarrar-se e
bater estrondosamente no balcão, que rangeu, aluindo-se do lugar. Ato contínuo,
corri, abandonando o recinto, apalermado com a minha repentina e inesperada
atitude. Atrás de mim, um vozerio uníssono, gritava um desprezível côro:
“Assassino! Assassino!”
Perambulei, qual um bicho de
mato, pelos campos, ocultando-me até a chegada da noite. De madrugada, com as
idéias extremamente confusas, temendo uma futura represália de Zé Preto,
regressei ao velho rancho em que morei com meu pai.
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- Tá preso! – disse a voz no
escuro, segurando em violento sopetão o meu ante-braço. Mesmo no lusco fusco,
percebi que a pessôa que me prendeu, bem como outras duas, estavam fardadas.
Não opuz resistência. No
caminho do Posto Policial, vim a saber que Zé Preto morrera, em consequência da
pancada recebida. Fiquei aliviado; cheguei mesmo a ficar contente.
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E agora, eu, Isidoro Marques,
ex-convicto, aqui estou após nove anos de encarceramento. Perdi os melhores
anos de minha mocidade, o período mais profícuo, mais róseo que existe na vida
de um homem sonhador e entusiasta. E, aqui me encontro, sózinho, indeciso, sem
destino a seguir, com medo da vida, com medo da própria realidade.
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O sól vai descampando no
poente. Seus raios mais longos percebem-se ainda, nos intermezzos de alguns
prédios distantes. Na rua, o movimento do cair da tarde, aumentou. As luzes se
acendem. Os fotógrafos e os engraxates desapareceram. Alguns mendigos, a passos
trôpeços, reiniciam a caminhada de volta. A noite veste-se para aparecer sôbre
a terra.
Levanto-me, apanho a velha e
anti-estética mala, e, com o mesmo passo indeciso e lento que ali me trouxera,
atravesso a praça, ganho a rua e perco-me entre a multidão...
Extraído da revista especial de Natal do Correio de
Marília de dezembro de 1954
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