Um ex-ladrão (19 de junho de 1974)
Dia outro, em São Paulo:
Adentrei numa lanchonete, na
Avenida São João. Aboletei-me numa das banquetas, após fazer um pedido ao rapaz
que veio atender-me.
Alguns metros além, mas em
posição quase frontal comigo, além de muitos fregueses no estabelecimento, um
homem duns 28 ou 30 anos, passou a olhar-me com insistência.
Costumo ficar cabreiro quando
noto uma pessoa desconhecida fixar olhar em mim, para desviá-lo quando é
encarada.
Nessa circunstância, a gente
fica a pensar em três coisas: ou o distinto é policial, ou é malandro, ou pode
até ser uma espécie de “coluna do meio”.
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Estava comendo, mas
perturbado com a atitude do desconhecido, que sempre que eu dirigia meu olhar
para o seu lado, apanhava-o fixando-me, apesar de baixar imediatamente a
cabeça.
Instintivamente, nessa
situação, a gente passa a ficar de sobreaviso: apalpa disfarçadamente o bolso
onde leva o dinheiro e não descuida da pasta ou pacote que tenha consigo. Mais,
fica-se “de olho” num indivíduo como esse, nesse caso.
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O homem acabou de lanchar, antes
do que eu. Vi-o pedir a nota e pagar a conta, inclusive deixando uns miudos de
propina.
Feito isso, levantou-se de
onde havia permanecido. E dirigiu-se até onde eu estava.
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- O senhor não é o Zé Arnaldo
de Marília?
A pergunta tranquilizou-me, pois
percebi que o homem me conhecia e que não poderia incluir-se em nenhuma das
três cogitações que anteriormente eu julgara.
Respondi afirmativamente,
concluindo em pensamento, que, embora o mesmo me conhecesse, eu não tinha a
mínima noção sobre aquela pessoa.
O homem estendeu-me a mão em
cumprimento. Perguntou se “tudo estava bem”, se eu continuava ainda em Marília.
E completou o meu pensamento:
- Parece que o senhor não
está lembrado de mim.
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Confessei que de fato não
fazia nenhuma ligaçao com o homem em minha lembrança. Justifiquei que sendo
muito popular, nem sempre consigo conhecer e lembrar de todos os que me
conhecem. E que situações como aquela, não raro, se me deparavam.
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Aí o homem explicou quem era,
dizendo:
- O senhor quase me matou de
susto, quando me metou um revólver no peito!
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E a rememoração veio à tona.
O homem, na ocasião rapazola
duns vinte anos, havia acostumado a roubar o pão e o leite de minha casa. Os
furtos não eram diários, mas intermitentes e não raro aconteciam duas e até
três vezes por semana.
Aborrecido com a sequência
desses roubos, resolvi uma manhã tocaiar-me para flagras o larápio. Sabendo que
o leiteiro passava por volta das três horas e o padeiro mais ou menos pelas
cinco da manhã, levantei-me às duas horas.
Fiquei colado ao muro, na
sombra e na escuridão, aguardando a visita. O leiteiro entrou e não me viu.
Fiquei firme. O padeiro veio e também não me viu. Aguentei.
Eram quase seis horas quando
um distinto parou defronte o portão de entrada. Olhou, prescutou. Abriu a
portinhola com cuidado e com mais cuidado entrou, indo direto à janela onde
estavam os dois litros de leite e o embrulho de pães.
Quando estendeu a mão para
apanhar o leite e o pão, pulei-lhe na frente com o revólver apontado.
- Quieto, se mexer morre!
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O rapaz chorou, pediu perdão.
Explicou que fazia “aquilo” para vender o leite num bar ou trocar por algo para
comer em sua casa.
No final, deixei-o ir embora
sem entregá-lo à polícia desde que não mais furtasse.
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E o homem recordou tudo,
contou a vida que levava e como estava vivendo em São Paulo: descentemente,
bem, exercendo um cargo de chefia numa firma importante.
No final, convidou-me para ir
à sua casa, para conhecer a esposa e duas filhinhas, pois, conforme disse
queria contar à mulher o fato e prová-lo com o meu testemunho.
Palestrando algum tempo,
inclusive tomando cerveja, quando ele retirou-se, renovando seu pedido de
perdão.
Quando ele saiu, deixou-me
até movido de felicidade, pois se todos os que na infância ou juventude,
pudessem, um dia, abandonar o marginalismo, para seguir uma vida reta e de
trabalho honrado, o índice de criminalidade seria bem inferior entre nós.
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