Carta do soldado à mãe morta (11 de maio de 1974)
Volpara, Itália, 14 de
novembro de 1.944, terça-feira.
Minha querida mãe. Faz hoje,
onze anos que deixastes este mundo ingrato, para irdes viver em outro,
diferente.
Onze longos anos que me
deixastes, ainda pequeno, para irdes viver nos céus, nas alturas do Infinito,
onde não germinam as ambições, a maldade, o egoismo, a hipocrisia, a ganância,
o terrorismo e a guerra dos homens loucos.
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Onze anos! O tempo vai
passando sempre, mistico, infalível e inevitável, sem alterar, entretanto, vossa
santa imagem de meus olhos, queimados por lágrimas de sofrimentos e desgostos
cruéis, que só vós, como sublime mãe, poderia avaliar. Esses anos não desfizeram
de minha lembrança nítida, vosso sorriso meigo e angelical, vossos gestos de
benigma candura, como jamais o farão. Vivereis eternamente em meu pensamento,
em minha alma.
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Sinto-me, apesar de tudo, só
neste mundo! Sinto-me só, apesar de cercado de filhos da mesma terra em que
nasci.
Ribombam, não longe daqui,
metralhas e canhões, cujos écos calam-se no findo de minha alma, como se fossem
os próprios projéteis. Sobretudo, sinto-me desolado e quase completamente
vencido. Às vezes, vejo-me um desolado, que aceitaria a própria morte, com um
sorriso nos lábios. Sinto-me a vagar constantemente, numa incerteza de vida e
morte, numa treva profunda, como um ébrio vencido pelo entorpecente de álcool e
abandonado pela razão.
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Não vos esquecerei. Fazer-vos
reviver na minha recordação, óra abalada e pendente entre um conflito de mortes
e sofrimentos, é o que desejo sempre.
Amar-vos, mais ainda, é o que
faço, sem atraver-me a suplicar-vos, que vivais no mesmo mundo em que vivo!
Subi ainda mais alto, muito
mais alto e subei que um dia estarei junto
a vós e esperai-me.
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Quando partistes, deixaste-me
na flor da inocência, quando só o sorriso da ingenuidade brotava em meus
lábios. Quando eu ainda ignorava as injustiças da terra.
Fiquei, pois, sem mãe, o
vocábulo mais doce e que mais significa nos corações humanos, a palavra sagrada
que encerra toda a grandeza de carinho e amor.
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Vós sofrestes por este filho
e agora ele sofre por injustiças praticadas por outros. Destes a vida a este
filho e agora outros querem tirá-la.
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Deixastes-me numa solidão
rude, com o coração dolorido, apesar de inocente. Solucei em silêncio sem
chorar. Hoje não tenho lágrimas siquer. Coloquei as mãos sobre o coração,
tentando sufocá-lo. Mas meu coração não parou, continuou sempre.
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O tempo foi passando e eu fui
habituando-me à vossa ausência material.
O mundo foi dando-me,
periodicamente, as lições da vida e adaptando-me aos poucos, às doutrinas de
natureza. Fui ambientando-me lentamente,
sem que eu o esperasse, à todas as suas maldades e astúcias. O homem, nos seus
procedimentos ao meu redor, foi aos poucos, injetando-me suas leis. Fiquei um
conhecedor do mundo, este mundo tão grande e tão vazio sem vossa presença.
Nos primeiros tempos de
solidão, busquei a sombra e tentei chorar sozinho. Depois, meu coração é que
chorou vossa perda. Tentei chorar sozinho no início, mesmo sabendo que as
lágrimas compartilhadas são mais suaves, mais doces. Eu não desejava ser
consolado, queria viver em minha amargura, queria que a vossa felicidade
dependesse de mim. Onde quer que fosse, eu procuraria dar-vos a suprema
felicidade, a paz que decorre dos amores filiais e generosos.
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Numa imensidade toda azul dum
sonho, eu vos amo ainda, agora mais, na minha idade dum joguete do destino,
afigurando-se-me, que ainda me pertenceis como antes, para além de minha vida.
Na minha compreensão adulta,
estremeço, fico angustiado, mas não mais tento lamentar a vossa perda. Que adiantam
as lamentações? Uma vez que Deus vos chamou para junto Dele, é porque fostes
digna dos céus. Agora, homem, compreendo. Posso agora, apenas, sentir o amor de
filho, sem no entanto bradá-lo publicamente. Tenho ainda, a felicidade de
manter intacta em meus olhos, vossa santa imagem.
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Vejo-vos sorrindo
maliciosamente e com satisfação, ante as
diabruras inocentes de minha criancice. Vejo-vos sorrindo de
contentamento, quando balbuciei as primeiras silabas do alfabeto. Revivo ainda
esses momentos e jamais os esquecerei.
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Hoje sou homem, não sou mais
aquele “filhinho” que deixastes inocente no mundo da ingratidão e da maldade. Mas
meu coração ainda é o mesmo e será sempre o mesmo. Não sou o homem da cultura
na ciência médica que vos prometi. Muitos motivos tornaram-se obstáculos, para
que esse almejo fosse concretizado. Conforme previstes, causas às quais eu
estaria sujeito, influenciaram de modo integral, evidenciando agora, que não conduzo
o título comprobatório das fontes da medicina.
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Entretanto, o mundo dos
homens como eu, que se dizem civilizados, empreendeu a mais terrível e
sangrenta das guerras. E eu fui atirado também, à fome dessa beligerância, onde
me encontro agora, lutando em terras muito diferentes daquelas que vós
conhecestes.
Tudo ao redor de mim são ruinas
e desolações. Escombros sinistros, destroços da civilização, implantados pelas
máquinas da morte de nossos semelhantes, que se mantam entre si, esquecidos de
que humanos são.
Sofrimentos, dores, desgostos
e morte estão sendo semeados onde estou, por seres humanos como eu, somente que
mais loucos e mais ambiciosos.
Um campo de batalhas!
E de um campo de batalhas vos
escrevo, dirigindo a Deus minhas habituais preces, hoje, pelo aniversário de
vossa morte.
Lá das alturas celestiais,
abencôa vosso filho saudoso, que de coração martilizado pelos sofrimentos, só
vos pode render esta minúscula e singela homenagem.
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PS – A carta acima foi
extraida do diário de um pracinha mariliense, que participou da II Guerra Mundial na Itália e aqui é
publicada pelo fato de amanhã, dia 12, transcorrer a efeméride do Dia das Mães.
Extraído do Correio de Marília de 11 de maio de 1974
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