Um Soldado atrevido (Natal de 1958)



José Padilla Bravos
2º Sgt. Res. FEB

- Sargento Mário!

- Pronto, tenente!

- Avise o pessoal do pelotão, que depois do “momento espiritual”, quero todos reunidos perto da lareira.

- Entendido, meu tenente.

As ordens, no Exército, são assim. Precisas e suscintas, dentro do maior laconismo possível. Sargento Márcio éra o Chefe de Secção e o Sub-Comandante do Pelotão de Transmissões, do III Batalhão do 6º Regimento de Infantaria. Estávamos no ocaso do período invernoso; a neve deixava de dependurar-se nos ramos dos arbustos amarelecidos, nos telhados das casas e nas torres das igrejas, para escorregar gradativamente e desaparecer na terra. O degêlo, uma realidade.

O “momento espiritual” fôra idealizado e posto em prática pelo comandante do pelotão, tenente Dantas Borges, no navio que nos levava à Itália. Às 18 horas em ponto, o comandante nos reunia e nos obrigava a manter-nos em silencio por alguns instantes, exortando-nos a pensar no Brasil e na família. Antes, porém, uma pequena preleção cívica e moral.

No início, ninguém recebeu com agrado a idéia. Os protestos foram mudos, porque no Exército ninguém protesta contra superiores hierárquicos. Depois, os soldados passaram a habituar-se ao “momento espiritual” e perceber que o mesmo fazia um bem íntimo indescritível. O áto não teve interrupção. Nem mesmo durante a guerra. Com qualquer número de soldados disponíveis no momento, jamais deixou de ser realizado. Na ausência do tenente Dantas, o Sargento Mário ou então o Sargento Mendes, continuaram a prática. Realmente, foram os únicos momentos em que pudemos nos dedicar, em pensamento único, ao Brasil e à família.

Dos 22 homens que compúnhamos o pelotão, apenas 9 homens participamos aquela tarde do “momento espiritual”. Estávamos alojados numa casa de pedras, na contra-encosta de um morro, num local chamado Áffrico, à margem da Estrada 64, que demanda à Bologna.

Semi-escuridão. De luzes, só algumas brazas da lareira, alimentada por quantidade racionada de carvão vegetal. Sentados em camburões de gasolina ou encostados na parede, ao som longínquo dos canhões alemães e ensurdecidos pelos tiros visinhos da artilharia brasileira, aguardamos o “peixe” (novidade) do tenente. Este, com sua indefectível bengala e seu ensebado “cache cól”, foi logo ao assunto. Disse-nos que tinha recebido do Comando do Batalhão, ordens para conceder três dias de licença em Firenze (Florença), à quatro elementos do Pelotão, que de um ou outro modo, mais dignos estivessem feito de tal premio. Com sinceridade, declarou-nos seu desapontamento em cumprir as ordens, porque não distinguia em seu pelotão, nenhum homem mais do que o outro, dentro das funções especificas de cada um. Não queria cometer uma injustiça, escolhendo quatro dos 23 companheiros. Porisso, “descalçava a bóta”, solicitando nosso apôio, em pról de uma solução para a designação dos felizardos.

Ninguém abriu a boca. Ninguém deu palpite. Todos esperaram, envolvidos num manto de indisfarçável curiosidade. Três de folga, depois de sete meses de combate, é alguma coisa caída do céu.

O tenente coçou os ralos cabelos louros e insistiu. Foi então que o soldado Baade deu a “deixa”.

- Tenente, faça um sorteio; assim, ninguém poderá reclamar ou estrilar.

O comandante olhou, no lusco fusco do ambiente, como tentando sondar o semblante de cada um. Uns murmúrios no início, palavras em altas vozes depois, deram a entender que a idéia éra a única saída.

Foi feito o sorteio. Primeiro número premiado: 2818 (o meu). Os outros três não me recordo quem foram. Lembro-me apenas que um foi o sargento Mendes.

A ordem foi completada: “Amanhã, às 8 horas, os sorteados devem estar no P. C. (Posto de Comando) do R. I., em Marano. De lá partirá um caminhão”.

Não dormi aquela noite. De fato, tinha quatro horas de trabalho no rádio e na central telefônica, compreendidas entre 21 e 23 e 3 e 5 horas. Nos intervalos, se o “tedesco” (alemão) permitisse, ser-me-ia facultado dormir num monte de feno podre, colocado no chão. Mas não dormi. Só pensei no passeio. Só pensei no passeio. Só pensei na folga. Só pensei nos três dias de “moleza”.

Na minha idade, nas circunstancias do momento, seria de esperar-se como pensamento principal do passeio, bebidas e mulheres. Entretanto, tal não acontecia. O que eu mais aspirava na ocasião, éra dormir. Mas, dormir em lençól, com gostoso travesseiro, coisas que eu desconhecia há cerca de 9 meses. Tinham-me informado de que em Firenze existia um Hotel Brasileiro para soldados. Se existia hotél – pensei – deveriam existir camas (com lençóis e travesseiros).

Antes das 7 horas, já tinha decido a contra-encosta e estava reunido a um grupo de soldados das demais sub-unidades. Deram a ordem de levar a manta (cobertor), mas eu não cumprí. Afinal, se ia para um Hotel Brasileiro, porque levar manta? E ainda u’a manta suja de barro, terra e restos de degelo, misturados com fiapos de feno pôdre de estrebarias?

Cheguei em Firenze. Sozinho, pois perdi-me dos companheiros do pelotão. Todos os demais ocupantes do caminhão eram desconhecidos para mim e na verdade não me interessava conhecimento com os mesmos. Azoinadamente sonhava com uma cama, com lençóis limpos e travesseiros...

Na entrada do Hotel, já tive uma decepção: entrar em fila, continências, “sentido”, apresentação, etc. – coisas que não existiam no “front”. Deram-me a acomodação. Um italiano foi acompanhar-me aos aposentos. Subí as escadas antegozando as delícias de um bom banho (coisa que não praticava há cerca de três meses) e um sono “diréto” de umas 24 horas. Entretanto, no quarto, nenhuma cama, nenhum lençól, nenhum travesseiro. Quatro “camas de campanha”, que deveriam ser utilizadas com as mantas que nos ordenaram levar!

Quem primeiro “pagou o pato” foi o italiano, que sofreu tamanho safanão, a ponto de cair no corredor. Depois sai enfurecido.

Pensei em “conversar” alguma família italiana, onde pudesse encontrar uma cama e um lar. Estava “estudando” a questão, andando a esmo pela rua. Movimento militar desusado. Ingleses, italianos, franceses, brasileiros e americanos, soldados canadenses , davam uma visão inusitada e inédita ao trânsito de Firenze. Seriam pouco mais de 14 horas. Entrei num bar, bebí um “bicchieri” (copo) de vinho e decidi-me pensar o que fazer, que rumo tomar, uma vez que estava decidido não voltar naquela espelunca que chamaram de Hotel Brasileiro (mantido pelo Serviço Especial da F.E.B.). foi assim, que andando a esmo, passei defronte um grande casarão, divisando numa gigantesca placa sobre o portão os dizeres: “U. S. Army – Rest Camp 44”. Com meus esparcos conhecimentos de inglês consegui traduzir o letreiro e aproximei-me de uma fila de soldados sujos e rasgados, oriundos do “front”. Entabulei conversa com um preto de Michigan e entrei na fila também.

Não sabia o que me aguardava. Tinha a certeza, entretanto, que iria “sair bem”. A “bicha” foi se escoando. Entramos numa porta e em seguida num corredor. Todos os componentes da fila iam se desfazendo, gradativamente, de todas as peças de roupa, que eram atiradas em montes distintos. No final, estávamos todos completamente nús e entramos numa área enorme, onde canos transversais, perfurados na parte inferior e colocados rente ao forro, esguichavam água abundantemente. Percebi logo tratar-se de chuveiros coletivos e entrei na água, tomando um “banho em conjunto”. Saí, acompanhando a fila, recebendo toalha. Depois, cuecas, meias, calças, camisetas e blusas, calçadas, quépis. Gostei da aventura e nem preocupei com a confusão que poderia surgir posteriormente, quando o serviço de lavanderia encontrasse, dentro das roupas usadas “made in USA”, a farda “verde oliva” nacional.

Entrei fardado de brasileiro e saí num gabardine amarelo, “fantasiado” de soldado americano. Conseguí uma cama num alojamento de 200 pessoas, próximo a um soldado americano que fôra criado no México e que dominava perfeitamente o castelhano, com o qual pude me entender e sair posteriormente a passeios.

Enquanto isso, meus companheiros pensaram nas “camas de campanha”, no “famoso” Hotel Brasileiro.

Na rua eu andava sempre temeroso de ser reconhecido por algum companheiro ou mesmo descoberto por algum americano. O “rôlo” seria certo e a “cana” inevitável. Tal não aconteceu. Passei três dias maravilhosos, conhecendo a cidade toda e visitando seus pontos turísticos, indo a cinemas e bebendo a valer.

Depois do terceiro dia, surgiu o quarto, “por conta”, uma vez que a turma do famigerado Hotel Brasileiro (consta que serviram feijão com arroz e “jabá”) fôra para seus destinos.

No quarto dia, resolvi ir embora e percebí horrorizado que não poderia apresentar-me ao meu comandante, fardado de soldado americano. Igualmente, não poderia tentar reaver minha verdadeira farda.

Estava numa sinuca dos diabos, quando surgiu um amigo do 6º R. I., que também havia “tirado um dia por conta” e tentava regressar. Por felicidade minha, o rapaz trazia “japona” (espécie de casaco) e capote. Emprestou-me o capote e tirei o gorro sem pala norte-americano ao chegar em “nossa” casa. Abraços, perguntas, e corrí logo cambiar a roupa. Poucos ficaram sabendo a “embrulhada” na ocasião. Posteriormente, o “caso” ficou conhecido de todos os colegas.

Trouxe comigo, a farda do Exército Norte Americano. Quando o então prefeito Neves de Camargo mandou um emissário (Basileu) à São Paulo e Caçapava, para reunir e trazer a turma dos expedicionários de Marília, roubaram-me o famoso “saco B”, onde guardava o uniforme “yankee” e uma infinidade de “souvenirs”...

Perdí o uniforme, mas a aventura valeu a pena.

E o mais importante: não precisei comer carne sêca...

Extraído da revista especial de Natal do Correio de Marília de dezembro de 1958 com a colaboração de Wilza Matos

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