Culpa eu não tenho... (18 de agosto de 1973)



“Enquanto Adão estava sozinho, tinha a vida calma e o orçamento equilibrado. Não precisava de comprar maçãs, nem frutas outras, mais ou menos indigestas e de caroço grande.

Passeava pelas áreas do paraíso, cantando com os pássaros e disputando recordes de velocidade com as lebres e com as raposas. Dormia tranquilo e acordava para fazer a sua merenda habitual, quando o sol ia alto.

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Foi só vir a mulher e começaram as intrigas. Eva entrou a dar com a língua e a meter-se com a vida das serpentes. Andava sempre às voltas com o que fazia o leão e com o que deixava de fazer a zebra.

Como ainda não existia a violão e o samba, divertia-se arrancando o rabinho das lagartixas e atirando pedras à corcova dos camelos. Afinal, arranjou um escândalo por causa de uma questão de frutas e Adão perdeu seu emprego vitalício por ter desgostado o Criador.

A primeira casa de família que existiu na terra acabou, como se vê, muito mal.

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Deixando o paraíso com sua trouxa de roupas, digo, de folhas, debaixo do braço, Adão tinha uma só preocupação: “que dirá disso a vizinhança?”. Enquanto isso, Eva não tinha preocupação nenhuma. Limitava-se a perguntar, de tempos em tempos: “Adão, a maçã já acabou?”.

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Os livros sagrados dizem que a mulher foi feita durante o sono de Adão.

Desde aí, os homens ficaram com medo de dormir.

Cronologicamente, a mulher foi o primeiro pesadelo que o homem teve, na terra.

E nunca mais deixou de ter pesadelos.

Adão não era escritor. Consta, entretanto, que deixou gravados, no tronco de uma árvore paradisíaca, pensamentos profundos sôbre “a delícia de não ter sogra”.

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Construída a primeira choupana que houve no mundo, Adão saia tôdas as manhãs, muito cedo, para o seu trabalho, deixando Eva sozinha em casa.

Eva, depois de procurar inutilmente o telefone, que não existia, acaba bocejando tão alto, que despertava tôdas as baratas na cozinha.

Então, Eva ia para a janela e começava a falar alto, consigo mesmo.

A primeira mulher foi, também, a primeira vitrola de que se tem notícia...”.

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Culpa eu não tenho.

Quem disse tudo o que ai está transcrito (e muitas coisas mais), foi o jornalista-escritor Berilo Neves, em seu livro “Língua de Trapo”, publicação da Civilização Brasileira, edição de 1934.

Extraído do Correio de Marília de 18 de agosto de 1973

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