Cavalos “papa milhões” (26 de julho de 1959)


Chegou a Santos ante-ontem, tendo ancorado no cais do armazém 30 da Cia. Docas daquela cidade praiana, o navio “Carlos Harnever”, procedente de Valparaiso, Chile. O vapor referido trouxe 14.490 sacas de aveia, num total de 932.400 quilos do citado cereal.

Até aí, nada de mais, conforme poderá parecer. E para alguns leitores, a informação que serve de preâmbulo ao nosso escrito de hoje, poderá parecer esdrúxula ou insôssa. Acontece que não o é. Vejamos porque.

Simplesmente pelo motivo de que a carga em alusão, destina-se à alimentação de cavalos de corrida, dos cavalos “papa milhões”, de propriedade de “tubarões” paulistas, os autênticos e indiscutíveis “barões da jogatina” de São Paulo.

Quanto custará, em cruzeiros, a fabulosa carga referida? Isso não importa, é lógico, porque o que prevalece no caso é o capricho de alguns endinheirados, o gosto pela jogatina desenfreada.

Enquanto a mesa do póbre falta o mais elementar alimento brasileiro, que é o pão (sem contar-se o leite, a manteiga, o calçado e o agasalho) os cavalos “papa milhões” do Jockey Club de São Paulo são alvos de tratamento verdadeiramente principesco. É mesmo um escárnio dos mais flagrantes e acintosos à piedade humana, o que ocorre a êsse respeito, enquanto milhares de crianças póbrem morrem sub-alimentadas em nosso país. Criancinhas esfarrapadas e mal alimentadas, sucumbem na própria Capital, nas infectas favelas e nas ruas da paulicéia, por falta de alimento. Os “barões” do turfe de São Paulo, procuram iludir a caridade pública, atirando de vez em quando, pequenas migalhas a fome da pobreza, numa falsa filantropia, para iludir os incautos e continuarem na caminhada abjeta e impune que empreenderam. Isto porque os cavalos de raça desses “tubarões” valem (para eles) mais do que a miséria, a fome, o impaludismo e o permanente estado de subnutrição do povo brasileiro.

O que é de admirar no caso em téla, é a facilidade com que esses desalmados “tubarões” do turfe paulista conseguem importar aveia e até leite em pó para os cavalos “papa milhões”, ficando a população póbre, à margem da concessão das necessárias divisas oficiais para a importação de leite em pó, medicamentos e outras necessidades imprescindíveis. A aveia chegada para os cavalos “papa milhões”, será desembaraçada pela Alfandega, com a brevidade possível, exigida pelos “barões” do turfe bandeirante, em contraste fragrante e desumano, com os estoques de leite que recentemente apodreceram nas dócas de Santos, por dificuldades burocráticas alfandegárias, cujo alimento tinha o destino piedoso de socorrer milhares de crianças famintas e póbres de nosso Estado!

A verdade aí está, para quem quizer contradize-la. A desfaçatez desse cometimento é tão ponteaguda, que fére, não só os brios da gente paulista, como, igualmente, a própria consciência da gente de nossa terra, se os “barões” do turfe tiverem consciência, é claro.

O que está acontecendo, o que já aconteceu e o que sucederá ainda nesse particular, não deixa de ser verdadeiramente abomináveis. É incrível, que algumas dezenas de “tubarões” endinheirados, continuem a pisotear tão impunemente abomináveis. É incrice da miséria paulistana e paulista, com a desenfreada contingência citada e a principesca vida dos cavalos “papa milhões”.

Extraído do Correio de Marília de 26 de julho de 1959

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O jogo do bicho (26 de outubro de 1974)

O Climático Hotel (18 de janeiro de 1957)

“Sete Dedos”, o Evangelizador (8 de agosto de 1958)