Música e leitura (19 de agosto de 1958)

Duas coisas importantes e necessárias à sensibilidade, espírito e lazer de toda a gente: música e leitura. Nem todos, entretanto, sabem apreciar u’a melodia ou uma boa leitura. Sôbre os que sabem ou gostam, as preferências variam. Há os que gostam de u’a música clássica, os que apreciam um motivo popular, os que se deliciam com uma passagem folclórica. Existem os que gostam de um romance de amor, de um conto policial e por incrível que pareça, há os que tem predileções pelo vernáculo ou determinada ciência.

Música e leitura, obrigatórias em todas as escolas, não conseguiram ainda convencer a maioria de nossa gente, de sua utilidade, de sua necessidade. Mesmo dentro das divergências naturais de predileções, não vemos difundidas em grande escala éssas duas importantes alavancas que ajudam a gente a viver.

O que gosta de música, que tem um senso emotivo musical firmado, sente um conforto incrível ao ouvir meia hora das melodias de sua predileção. O que aprecia a leitura, seja de qual gênero for, passa horas e horas mergulhado num livro, indiferente ao que ocorre no mundo e mesmo em seu derredor.

Ouvir música – para quem gosta – e ler – para quem sabe –, é o mesmo que nadar: enquanto se nada, não se póde pensar em outra coisa, por mais importante que seja.

Lembramo-nos disto, ontem à noite. Ao vasculhar nossa pequena e acanhada biblioteca particular, de franciscana pobresa em óbras de importância, deparamos com um volume que ganhamos de presente lá pelo ido ano de 1936, quando ainda não tínhamos concluído o curso primário. Um romance sobre a Amazônia, escrito por Abguar Bastos, intitulado “Terra de Icamiaba”. Trata-se da 2ª edição, do ano de 1934.

Já tínhamos lido dito livro mais de uma vez. Quando o devoramos pela primeira oportunidade, não fomos capazes de interpretá-lo claramente. Posteriormente, relemos o volume, para “matar o tempo”. Mais tarde, outra vez. Ontem, caiu-nos às mãos dito objeto, mais uma vez. Abrimos suas páginas e deixamos correr os olhos. E gostamos, embora em reprise, fomos adeante.

Leitura deliciosa, apesar da ortografia pretérita. O escritor parece u’a máquina fotográfica, gravando em letra de fôrma, os mais minuciosos detalhes da vida do caboclo amazônico, sua óbra, sua miséria, suas crendices.

Não somos lá bons interpretadores de grandes óbras, mas gostamos do que relemos. A vida núa e crúa do amazonense distanciado da civilização, sua odisséia pela própria vida, suas agruras, enfim.

Tem dois fundos, o citado volume: o patriótico e um outro, que poderíamos considerar como de ogeriza ao estrangeiro, um nacionalismo exagerado, por vez pecador. Entretanto, sua leitura, sob o aspecto puramente literário, é uma obra prima. Tem quadros maravilhosos, fazendo com que o leitor se sinta integrante e acompanhante do desenrolar da história, passando a viver com ela todos os passos de seus personagens.

Descreve com pormenorizados detalhes, o movimento de uma perna no andar, o jogo desenvolvido pelo “pomo de Adão” de uma pessoa que engole o café e outras coisas, exemplificando. É claro que não é bem isso, mas cremos que os leitores nos compreendem. Uma máquina fotografando em quadros coordenados a realidade, a vida de uma gente, numa determinada região do Brasil. Coisas curiosas, diferentes dos melosos romances de amôr, divergentes dos contos policiais por mais empolgantes que sejam. Mostra a vida do sertão amazônico como éla é, seus espinhos, suas dificuldades, seu abandono. É uma clarinada de alerta aos govêrnos, para que volte suas vistas para aqueles irmãos que alí habitam e que tanto amam aquele rincão.

O que mais impressiona no citado volume, é a facilidade do linguajar, os quadros tecidos pela fértil imaginação observadora do autor. Leitura gostosa, amena, prendedora.

Ao revermos o livro, ao abrirmos o volume e repassarmos suas páginas, sentimos aquela satisfação que sente uma pessoa em rever alguma coisa querida e que a tempo não vê. Saudades de sua leitura, saudades de sua história.

Leitura e música, que tanto bem fazem ao espírito da gente, especialmente dos homens de nossos dias, tão assoberbados pelas responsabilidades da própria subsistência, deveriam preocupar mais a todos, indistintamente, a começar pelos pequenos. O gosto por éstas duas artes, talvez contribuísse para que os jovens de hoje (1958) crescessem com mentalidades diferentes das dos atuais e indesejáveis “play boys”.

Extraído do Correio de Marília de 19 de agosto de 1958

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